Em 16 de maio de 1988, cinco meses antes de ser promulgada a Constituição que estabeleceria o Brasil democrático, o país parou para ver a estreia da novela Vale Tudo.
Com Gal Costa cantando Brasil, de Cazuza, em inspirada abertura da turma de Hans Donner, na qual figuravam marcantes paisagens brasileiras, a novela conquistou o público.
Ela mostrava a história de Raquel (Regina Duarte), uma mãe que é passada para trás pela própria filha, a ambiciosa Maria de Fátima (Gloria Pires). Como pano de fundo para o embate familiar, um Brasil com economia em crise, desigualdade social, desemprego, corrupção e desesperança.
Quase 23 anos depois, a trama escrita por Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Basséres seduz outra vez o brasileiro, reexibida pelo canal pago Viva e também disponível no YouTube, graças a telespectadores fanáticos.
Mas, afinal de contas, o que mudou e o que continua igual quando se compara o Brasil de 1988 apresentado no folhetim com o atual? Com a palavra, Gilberto Braga, um dos autores da trama.
- Quase tudo é igual entre o Brasil de Vale Tudo e o atual. Só acho que - e isso é muito positivo - as pessoas estão mais preocupadas com a impunidade.
Aguinaldo Silva, co-autor, lembra que, no mundo político pouco mudou.
- A classe política ainda é a mesma, assim como a corrupção institucionalizada e a atitude arrogante das classes dominantes, incluindo, de novo, os políticos, que se acham acima do bem e do mal. Em Vale Tudo, essa classe é tão bem representada pela personagem Odete Roitman [Beatriz Segall].
Para o novelista, ainda impera "a irresponsabilidade das pessoas menos favorecidas em relação à própria vida".
- Elas não pensam no futuro, esquecem o passado com uma rapidez incrível e só querem saber da cervejinha e do samba do presente.
Quando questionado o que mudou para melhor na sociedade brasileira nestes 23 anos, Silva demonstra pessimismo.
- Pouca coisa, mas uma mudança importante é que o brasileiro perdeu aquele sentimento de inferioridade que o tolhia. Hoje, não somos, mas nos achamos o máximo. O Brasil continua o mesmo, só que maior, e com problemas maiores ainda. O mundo é que mudou e nos levou junto. E como o mundo mudou pra pior...
Um Brasil igual ou diferente?
Professora de ciência política da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos), Maria do Socorro Sousa Braga discorda de Aguinaldo Silva.
Ela se diz “uma otimista” em relação às mudanças na sociedade brasileira nas últimas duas décadas. E recorda que, quando Vale Tudo foi ao ar, o país vivia sob uma inflação galopante, com planos econômicos fracassados que geravam um sentimento de desamparo e incerteza do brasileiro quanto ao seu futuro. Para ela, isso contrasta com a atual maré de crescimento e de estabilidade monetária e econômica.
- Há amadurecimento político e maior independência externa do Brasil. Estamos em um caminho de melhorias nas desigualdades sociais. Sinto que o Brasil melhorou e, com ele, a autoconfiança do brasileiro. Sou muito otimista neste sentido. Hoje, para dar certo, o brasileiro não precisa deixar o seu país, como acontecia no fim da década de 1980.
A cientista política reconhece que males como a corrupção permanecem, mas lembra que, com a democracia consolidada, há maior liberdade para se mostrar os atos indevidos, "sobretudo com o advento da internet".
E foi por meio da rede mundial de computadores que Vale Tudo conquistou novos telespectadores em pleno século 21. Gente como o estudante de direito Matheus Oliveira, de 19 anos, morador de Juiz de Fora (MG), que era praticamente um bebê em 1988.
- Vi várias pessoas comentando no Twitter os primeiros capítulos, sempre elogiando. Resolvi assistir um. Depois, não parei mais. A história é envolvente, os personagens, marcantes. Os conflitos também são ousados, parece que os autores querem provocar o público. E os atores estão muito bem.
Veja galeria: antes e depois dos atores de Vale Tudo
Em 1988, Cazuza canta com Gal Costa Brasil, tema de Vale Tudo: hino de uma geração - Foto: Ana Stewart/AE
"Brasil, mostra a sua cara!"
Se Vale Tudo desperta paixões e opiniões distintas sobre o Brasil de ontem e de hoje, em um quesito a trama chega perto da unanimidade: o da qualidade.
Autor do livro Os Ídolos do Pop Rock (ed. Event), o repórter de Música, Fabian Chacur enfatiza que até a trilha sonora da produção é destaque.
- Destaco a música É, do Gonzaguinha. Ele me disse uma vez que a novela parecia um grande videoclipe da canção. Isso sem falar que a música Brasil, na abertura, era um retrato do país de então, em letra inspirada de Cazuza.
Mãe do cantor e compositor e prima de Gilberto Braga, Lucinha Araújo recorda que o filho era um telespectador assíduo da novela.
- Na época de Vale Tudo, o Cazuza me dizia: "Mamãe, toda noite eu ligo a TV para escutar minha música cantada pela Gal". Essa musica é um emblema na carreira dele. Ele parou de olhar para o próprio umbigo e olhou para a sua terra. Músicas como Brasil e Um Trem para as Estrelas são verdadeiros gritos. Para ele foi um presente, ter sua música na abertura, aos 31 anos, já doente. O lado triste é que eu acho que até hoje o Brasil não mostrou a cara dele.
Especialista em teledramaturgia da USP (Universidade de São Paulo), Claudino Mayer define Vale Tudo como “uma das melhores novelas de todos os tempos, que inovou no ritmo veloz para contar uma história, sendo um retrato do Brasil de sua época”.
- Vale Tudo faz parte da memória social brasileira.
Diante de tanta repercussão para uma novela prestes a completar 23 anos, só resta a Gilberto Braga se encher de orgulho.
- Claro que eu fico feliz em ver a novela outra vez na boca do povo. Eu fico com a bola cheia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário